sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O esquerdismo se revela

O esquerdismo se revela


por Roberto Mattoso Câmara Filho (revista "A Ordem" dezembro 1961)


Em recente artigo publicado nesta revista, José Carlos Barbosa Moreira aponta o paradoxo atual da adoção, pela assim denominada esquerda, das atitudes conhecidas como típicas da direita revolucionária há alguns anos atrás. A constatação é precisa, e deixa armado o paradoxo.

Quando lia o inventário das atitudes políticas da direita de então assumidas hoje pela esquerda, lembrei-me da tristeza com que um amigo, crente fervoroso da democracia, me reproduziu as palavras de um amigo seu, militante de partido cristão, a respeito da questão, eleições no funcionamento do organismo político: "E para que eleições!" Esta frase vinda de um militante de partido democrático dá para meditar.

Quando passei por este trecho de referências psicanalíticas, ocorreu-me a leitura de trechos de um livro de um marxista, "A destruição da Razão". O autor, George Lukacs, faz um levantamento das linhas e sublinhas das filosofias consideradas por ele irracionalistas, e pretende mostrar que o procedimento delas é uma fuga aos problemas infraestruturais através do mergulho nos domínios do irracional e do mito.

Ora, não fosse o autor um marxista, teria que acrescentar a seu livro um capítulo, onde analisaria, à luz de uma razão autenticamente filosófica e desmistificada, coisas como a dialética na matéria, a dialética na história, para não falarmos na função redentora do proletariado. O marxismo apresenta uma filiação racionalista, aparentando-se com Descartes através do idealista Hegel, mas, como é peculiar às filosofias híbridas, também rende seu culto ao irracionalismo moderno.

É esta via irracionalista do marxismo que pode explicar o paradoxo de as bandeiras irracionalistas terem passado, atualmente, das mãos dos revolucionários da direita para as dos esquerdistas.

A questão fica melhor compreendida se lembrarmos que a direita de outrora, cujo comportamento é agora plagiado com convicção pela esquerda, era tão revolucionária quanto esta última. Direita, no dicionário politico de anos atrás, era conceito que repelia conotação conservadora e implicava em ideologia revolucionária. Os direitistas eram tão inimigos dos burgueses e de suas instituições quanto o são hoje os esquerdistas. E há um ponto comum entre a esquerda e a direita, fonte de uma simetria siamesa, de que muita gente está hoje esquecida: a veneração do estado.

Os direitistas eram inimigos e dinamitadores de um estado, com vistas à instauração e à sagração de um outro estado. A destruição do Estado burguês era tanto sua obsessão quanto é hoje para o comunista. E o mais interessante, no ódio comum ao Estado burguês, é que ele nasce de um conceito comum divinizador do Estado e de uma crítica à minimização do Estado burguês. Direita outrora, esquerda hoje pretendem uma absolutização do Estado, num procedimento muito diverso do corpo político dominado pela burguesia que lhe entregava a supervisão do supérfluo, que lhe outorgava meras funções de polícia de vigilância.

O Estado para a direita revolucionária era também um absoluto, o Absoluto. A teoria política dos direitistas se concentrava também no conceito de Estado totalizador, integralizador, como um entidade que absorve todos os órgãos criados pelo organismo político, comunicando-lhes seu modo de ser, e que absorve, também e sobretudo, modelando-os, dando-lhes seu plasma, os homens sob sua suserania.

A direita também se comunicava com o Absoluto. Assim como para o comunista existe o Partido Comunista, ser meio natural, composto de homens que se matam uns aos outros pelo poder, meio sobrenatural, que é intérprete do Estado e conhece, por isso, os segredos do Absoluto, para o direitista existia  o partido nazista ou fascista. Também, o conceito de partido para a direita revolucionária era diverso do democrático. Os partidos, ou melhor, o pluripartidarismo, traduzia aos olhos do homem da direita aquela desagregação própria do Estado-polícia-de-vigilância da sociedade burguesa. Um direitista que visse as atitudes de seu partido revolucionário consideradas como meras atitudes políticas expressando o pensamento de um grupo de homens no gozo de seu livre arbítrio, sentiria rebaixada sua dignidade de intérprete da história. A direita revolucionária ouvia a história e fazia a história através de seu partido.

Nada mais natural, portanto, que as bandeiras das fascistas e nazistas sejam hoje desfraldadas pelos esquerdista nas paradas da política. A grande autoridade, diante de quem desfilam hoje os esquerdistas, é a mesma que presidia às paradas dos direitista: o Estado.

No entanto, há algumas observações a fazer quanto às repetições da esquerda do presente.

A primeira é que a confissão totalitária redunda, ao mesmo tempo, num mérito e num crescimento no erro por parte da esquerda. É que sua atitude de hoje representa uma explicitação e uma confissão de coerência frente a suas premissas. Ela é mais coerente, lógica e sistemática, hoje, do que foi há tempos, quando pedia emprestadas bandeiras com símbolos democráticos para acenos de simpatia. Temos de agradecer-lhe, neste ponto, pela abertura do jogo. Hoje não mais esconde que seu Absoluto é o Estado e que a perfeição do processo histórico consumada no Estado dispensa e rejeita até expedientes alienatórios quais os de eleições, livre organização sindical, pluripartidarismo, etc. O Estado tem a história a lhe sussurrar seus segredos e suas vontades e dispensa, perfeitamente, os adminículos da opinião pública. Isto representa, também, uma consumação e uma perfeição do erro.

A segunda observação, decorrente da primeira, é que a admissão do jogo democrático no passado constituiu uma simulação visando a esconder as verdadeiras e originais intenções antidemocráticas da filosofia da esquerda. Os de esquerda nunca poderiam ser , de fato, simpáticos ao jogo democrático, ou mesmo ainda à filosofia política democrática. A essência de sua filosofia política repele as figuras, a dinâmica e o espírito da autêntica democracia. A absolutização da Estado é um expediente filosófico que, pelas leis lógicas das estruturas filosóficas, rejeita o conceito de pessoa humana como núcleo ontológico superior ao estado e com uma vocação de valência superior à do Estado. Ora, os expedientes democráticos decorrem da organização política que visa a fazer do Estado um instrumento a serviço dos corpos políticos  constituídos pelos cidadãos, enquanto homens no uso de sua razão. O Estado se submete à ordenação racional que as pessoas constituídas em corpo político lhe imprimem, e para esta ordenação são necessários os pronunciamentos democráticos e a instituição de processos democráticos respectivos.  Decorre que, pelas leis das essências, a esquerda não poderia reconhecer estatuto filosófico aos processos democráticos.

A terceira observação diz respeito a uma falsa ambivalência da esquerda de outrora, consistente na presença de linhas de força coletivistas ao lado de linhas de força humanistas, hoje desmascaradas e reduzidas à monovalência do coletivismo. Outrora muitos se engajaram na esquerda iludidos pela restauração dos direitos do homem e da dignidade de pessoa humana, de que a esquerda se proclamava campeã. Hoje a esquerda confessa seu desamor ao homem enquanto homem, ser espiritual, trombeteia a prevalência do homooeconomicus. É claro que para uma concepção do homem em que este seja visto apenas como homo faber, ser fabricante de ferramentas, a filosofia democrática e seus processos constituem superfluidades e até estorvos. Observemos, entre parenteses, que uma filosofia política recebe seu modo de ser, em virtudes das leis lógicas internas a uma filosofia, da concepção do homem que ele apresentar ou que lhe for apresentada.

O irracionalismo em sua forma típica de divinização do Estado não sofre, portanto, solução de continuidade passando das mãos da direita para as da esquerda. E a esquerda se mostra mais radical, mais solícita ao misterium tremendum encarnado pelo Estado, mais ávida de oferendas ao Leviatã que amplia seu altar até  o tamanho do "paredón".

No reino de Leviatã, não há dúvida, "para que eleições!", basta um "paredón" para os que negarem culto ao deus ciumento. E não exagero, que um esquerdista meu parente, também escarninho quanto a eleições e outras quejandas da democracia, me lançou na cara que a existência dos Estados Unidos é nossa garantia única, ainda, contra um "paredão" que virá para nós, quando assim decidir a dialética da história.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Apenas comentários inteligentes.